segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

Branco

Talvez fosse melhor se separar
Talvez fosse melhor pedir demissão
Talvez fosse a hora de fazer aquela viagem
Talvez fosse a hora de terminar aquele livro
Talvez fosse a hora de contar todas as verdades
Talvez fosse o dia de trepar com a tal vizinha
Talvez fosse uma boa tarde para mergulhar nu no mar
Talvez fosse a hora de gritar

Mas ele não fez nada disso

Aproveitou a hora do almoço para caminhar
Continuou de paletó, mas acanhadamente tirou os sapatos e as meias
Caminhou até chegar em casa
Era uma casa bonita, bem parecida com aquelas desenhadas pelas crianças no jardim da infância

Não havia ninguém

Sentou-se na sala, próximo à mesa de centro
Da pasta tirou papel e caneta
Escreveu dois bilhetes, levantou-se e foi até a cozinha com os papeis na mão direita
Colocou-os sob imãs na geladeira.

Uma banana e um anuncio de uma distribuidora de água mineral

Foi até o quarto. Um bom tempo parado diante da porta
Respirou tão fundo que as lágrimas quase transbordaram

Entrou e saiu com um abajour
Logo com travesseiros e lençois e todas as coisas miúdas
Voltou, fez muito barulho e saiu com pedaços de madeira
Cama, criado mudo, guarda roupas

Aquilo havia deixado de ser um quarto
Era agora um cômodo vazio
Branco

Há muito havia passado a hora de voltar para o trabalho

Ele foi até a cozinha, bebeu um copo d´água, despiu-se
Pegou algumas toalhas brancas, uma cadeira e voltou para o cômodo vazio
Colocou a cadeira bem no centro e com as toalhas fez um circulo ao redor

trancou o cômodo vazio e com dificuldade engoliu a chave
Sentou-se na cadeira e simplesmente respirou
O sangue corria pelas suas veias
Cresciam os pêlos todos do corpo
Seus olhos viam, e escurecia quando piscava
Havia saliva em sua boca
Cresciam também suas unhas
Seus ouvidos ouviam todo o silêncio
Tudo numa lentidão infinita

Tirou sua própria vida
Percebendo antes disso que era a unica que realmente possuia

E tudo ficou mais Branco
A bola vermelha que se formou no chão parecia pipocar no meio do nada
Mas ficou tão Branco que até mesmo ela se perdeu
Tudo tão Branco, mas tão Branco que acabou

5 comentários:

  1. Eu não curto suicídios, mas o início do poema me fez sorrir muito feliz, principalmente este: "Talvez fosse a hora de fazer aquela viagem".

    To indo pra Recife dia 18!
    ;)

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  2. Uma história muito triste, mas ao mesmo tempo tão bem escrita. Adorei mesmo muito**.


    Desculpa minha ausência. Beijo muito grande.

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  3. Se a gente nasce do vermelho. Talvez mesmo morra no branco.
    Prefiro morrer no branco do que no preto!
    Apenas o meu gosto!

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  4. Sim, lendo seu comentário me lembrei daquele livro, que depois virou filme o Ensaio sobre a Cegueira.
    A cegueira branca é algo que me intrigou muitíssimo. Afinal o branco é a união de todas as cores!
    Enfim, eu viajo nesses detalhes!

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  5. ótimo, bem escrito, intrigante e, embora triste, intenso e suave ao mesmo tempo! Laís Mussarra

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